UM TIPO INESQUECÍVEL
- paulochedid
- 5 de dez. de 2019
- 4 min de leitura
Wady Cury sentou-se ao piano como se fosse o dono.
Sentiu solidão no instrumento de cauda e cordas perdido no meio do lobby imponente. Imaginou música a alegrar passantes apressados, vindos de elevadores atrasados ainda distantes da condução e do compromisso.
Ajustou o banquinho. Experimentou os pedais. Livrou o teclado da tampa e da manta macia que mais parecia um cachecol feito para aquecer notas musicais. Entrelaçou os dedos das mãos, alongou como profissional e estalou com orgulho.
Tocou sem pedir licença. Baixinho para não ser notado.
Delicadamente, porém, como quem pinta um quadro, a música tomou conta e mudou a cena. Despertou atenção, curiosidade e emoção.
“La cumparsita” desligava as aflições.
Alguns paravam para ouvir, assistir e sorriam. Sem sucesso, um atrevido convidou a feia para dançar o tango e foi recusado.
Nada mais ficou igual embaixo do fantástico lustre que iluminava até a alma dos hóspedes do hotel Waldorf Astória, personagem protagonista dos bons filmes que faziam de Nova Iorque seu cenário nos dourados anos de 1950.
O filho de Dona Amélia sentia-se um Turista Acidental em letras garrafais iluminadas na fachada da capital do mundo.
Alí, Wady Cury era o artista da Franca que pintava paisagens da roça sonolenta, natureza morta que parecia colhida na hora, que pintava rostos marcados pela vida.
No seu quarto de pensão da Rua Santo Amaro 313, largara as amostras de cobertores, roupa de cama, mesa e banho Scavoni que garantiam seu sustento e o almoço diário na Salada Paulista da Avenida Ipiranga, quando voltava das vendas na José Paulino do Bom Retiro.
O balcão de mármore branco da Salada Paulista agradecia o desenho com lápis cópia enquanto não vinha a salada de batatas e a salsicha da casa temperada pela mostarda de receita secreta.
Logo, podiam-se ver lindas mulheres, algumas vestidas outras nem tanto, assinado Wady Cury.
Terminada a refeição em pé, restava no balcão e que ninguém ali tocasse, a gorjeta de pernas bonitas, olhos espertos, provocativos, a curiosidade dos vizinhos e o agradecimento dos garçons em coro, girando alto guardanapos brancos no ar: “caixinha, obrigado!”
Por muitos anos, Didi perdeu horas de sono para estudar inglês e sonhar acordado com Nova Iorque.
Em sonho, Didi “viajou” na Brodaway e seus shows, na Quinta Avenida e suas lojas, deliciou-se com um imenso cachorro quente lambuzado de molho no meio da rua, Nova Iorque da Chinatown, da Little Italy, do Central Park, da Time Square e suas luzes incríveis.
Naquele 1958, Paris era a cidade luz, o centro de tudo. Mas, a capital do mundo já era Nova Iorque.
Ter sido comissário de bordo da VASP na juventude inspirou Didi. De conversa em conversa, como ainda não havia Google, WhatsApp, essas coisas, ficou sabendo de condições especiais que a VARIG oferecia, desde que se lotasse o avião.
Com a “sobrinhada” de Franca teve boas notícias que iam além de Mitre e Alfredo.
Em São Paulo, seus amigos fizeram o restante. Como disse Didi no embarque em Congonhas: “Pouco avião para tanta gente!”
Gente! Era do que Wady Cury mais gostava.
Mas, pouco falava da paixão de moço em Franca. Odete Franco, que ninguém nos ouça, era o nome da moça que nunca mais casaria.
Didi era bom de prosa, comunicador nato, contador de causos e piadas inspiradas, recitador de poesia caipira.
Mas, ninguém nunca soube por que aquele namoro não deu certo.
Mais tarde, para lá de solteirao, quando perguntado por casamento dizia: “Estou esperando apanhar idade.”
Nosso tio Wady era também tio dos nossos amigos e fazia do ambiente uma grande família.
Por origem, Didi era tio dos filhos dos irmãos Aniz, Benjamim, Salima, Abrão (não teve filhos), José (solteirão), Melica, Namem, Salua; também era o tio querido dos filhos dos sobrinhos. Tio de metade da Franca e adjacências, descontado certo exagero.
Da Mooca, na Capital, Alex Periscinotto, vitrinista e publicitário do Mappin embarcou na excursão do Wady para Nova Iorque.
Mas Alex, sempre engravatado com grosso nó a enforcá-lo, não foi a passeio. Tinha hora marcada na Thompson da Park Avenue.
Cheio de pressa, Alex não ficou para ouvir La cumparcita.
Quase correndo saiu do Waldorf Astoria, apanhou o primeiro taxi amarelo que acabara de deixar uma passageira no hotel e quase sem fôlego exibiu o endereço do destino para o motorista: J. Walter Thompson, uma das mais importantes agências de propaganda do mundo.
Anos depois, encontrei Alex na ACM-Associação Cristã de Moços, já famoso sócio de uma grande agência com clientes internacionais, palestrando em um almoço sobre o marketing da Igreja Católica na Idade Média, criado pela PHIDES, a primeira agência de propaganda da história.
Contou Alex Periscinoto que “Nem bem mostrei o endereço, o motorista arrancou, rapidamente deu a volta no quarteirão e parou de onde saiu. Pegou o papel com endereço e exibiu, apontou o número do prédio vizinho do hotel, quase morreu de rir e recusou qualquer pagamento.
Alex divertiu-se com o próprio nome, naquelas andanças pelo reino da publicidade. Deveria chamar “O Dia em que a *Interrogação* virou sobrenome”. Periscinoto? Como se soletra? Como se escreve? Como se pronuncia? Nas agências, a compreensão não passava do Alex. Era inevitável: “Alex o quê?”
Na ACM da Nestor Pestana, piscina semi-olímpica e quadra assoalhada de basquete era o espaço de esporte e diversão do Wady Cury. Só não aproveitou o fato de ali ter sido criado o futebol de salão, Esporte Café por ter origem em São Paulo, como apelidava o gordo José Anthoniades Inglês, especialista de A Gazeta Esportiva.
Ao mesmo tempo que Wady Cury e sua turma se encantavam e encantavam Nova Iorque, a Seleção Brasileira de Futebol do menino Pelé surpreendia e deslumbrava a Suécia na Copa do Mundo de 1958.
Era o Brasil fora da toca, que saiu para dizer umas verdades.
Que o Rio de Janeiro era nosso e Buenos Aires ficava mais embaixo. Que bossa nova se cantava com banquinho e violão, o samba se cantava em português e tango era um negócio de ocasião para gringo dançar no mais famoso hotel do pedaço.
Nos salões do Waldorf Astória, Wady Cury era a glória a agradecer insistentes aplausos e pedidos de mais emoção.
Wady Cury, modestamente sem nada explicar, saiu para acompanhar o sobrinho Mitre que perdia a audição, em uma consulta com o médico “papa da finestração”, cirurgia que talvez pudesse salvar um bom ouvinte para próximas audições.
Nota: O repertório musical de Wady Cury ao piano, não ia além de La cumparcita.
Paulo Chedid
11 de novembro de 2019
Que texto maravilhoso Paulo!! Obrigada por reviver a Saudade imensa tio Wady, um homem artista que nos proporcionou tantos momentos de alegria! ❤️