As Longas Noites de Joaquim Dias
- paulochedid
- 5 de nov. de 2019
- 3 min de leitura
Nos tempos em que havia alfândega entre Portugal e Espanha, de um ou do outro lado, abastecia-se carros e passageiros, conforme advertência de Joaquim Dias: “As Noites são Longas.”
Fosse o copo ou o prato, nosso orientador lembrava: “Não deixe para depois…” Ninguém ousava discutir, muito menos desobedecer.
Catanhede, na Bairrada, sempre era o ponto de partida ou o de chegada. Dalí, ia-se a toda parte ou voltava-se de lá. Com naturalidade voltava-se de Lisboa, partia-se para o Porto, comia-se umas sardinhas na Figueira da Foz, dava-se um pulo em Coimbra ou Pombal, ao lado de Leiria onde o bacalhau ainda é muito bom.
Mas, bom mesmo é dar umas voltas em Madrid. Toma-se o “pequeno almoço” logo cedo para não perder o almoço em Espanha, onde quem chega tarde não come, porque estão todos a tirar uma soneca, o que explica a alegria de sua vida noturna.
E Joaquim Dias sempre junto a combinar com os ocupantes do segundo carro que nos encontrariamos na frente do Preciados, embora fosse uma rede de lojas, mais tarde vendida por uma fortuna para o concorrente El Corte Ingles.
E não tem erro. Importante lembrar que naquele tempo não havia celular e derivados. Dava certo. Parecia milagre. Quem sabe?
Mais ou menos assim: dois carros, cheios de passageiros estrangeiros, saem do Rio de Janeiro para almoçar em São Paulo e fica combinado encontrarem-se na frente do Bradesco. Agora só falta o Bradesco ser vendido para o Itaú.
Em 1985, de volta do Festival de Cinema de Moscou, fui dormir em Catanhede, não sem antes jantar na casa de Joaquim Dias e assistir a uma noitada de Fados de Coimbra com o Coral dos Capas Pretas da Universidade. A música é linda, mas os Capas Pretas bem que podiam cantar com legenda.
Acordei com o barulho dos esquilos no quintal. O pequeno almoço teve muita oferta e pouco consumo. Era apropriada a moderação, que logo terminou com almoço delicioso e farto, com laranja do pé à mesa no encerramento. Engana-se quem imagina o fim da orgia gastronômica.
Carlos Alberto, assíduo frequentador do Brasil, não permitiu descanso. Alliou-se a Joaquim Dias e tocamos para o Pedro dos Leitões, onde basta uma prova e aquele divino sabor do melhor leitão do mundo, nunca mais será esquecido. Dali à padaria e o destino final do banquete nas Caves D´Aliança regado a vinho tinto espumante, inédito em qualquer outro canto.
Esse relato é fiel e verdadeiro. Pouco antes das seis horas da tarde, contrariados pelos compromissos a cumprir, voltamos a Catanhede para não perder o jantar.
Quem não conhece pode imaginar um Joaquim Dias desobrigado da vida, indiferente ao sustento e ao trabalho. Joaquim Dias era um próspero comerciante de produtos para o conforto e a beleza de uma residência.
Fui ver para crer.
Alí, tudo havia. Encantou-me um lustre de cristal pendurado com muitos outros em varais que atravessavam o teto da loja. Seus funcionários logo acorreram com sorrisos de boas vindas na minha opinião; ou sorrisos de boas vendas, na opinião dos mais vividos.
Joaquim Dias, desta feita acompanhado de Dona Idalina, amada esposa com quem não teve filhos, atléticamente subiu ao balcão, alcançou o lustre que depositou à minha frente sem maiores cuidados com os delicados pingentes de cristal, certo da reposição que seria feita em menos de um mês, já em nosso apartamento de São Paulo, onde elegantemente ainda busca iluminar a escuridão do Brasil.
Foi então que Joaquim Dias, surpreendentemente surge em São Paulo na busca de urgente assistência cardiológica. Atendimento, consulta, exames, diagnóstico, cirurgia de sucesso e a Unidade de Terapia Intensiva com a recomendação de ficar tranquilo, em paz, para superar as primeiras 48 horas de risco fatal.
Poucos souberam que do seu leito de UTI, plugado, Joaquim Dias, assistia o relógio da enfermagem pulsando cada segundo, cada minuto, a eternidade, as mais longas noites, as mais lentas quarenta e oito horas de toda sua vida.
Joaquim Dias voltou para sua Catanhede no Centro de Portugal, onde ainda viveu bons anos cuidando de suas vinhas e produzindo quase quatro mil litros de vinho por ano, apenas para consumo próprio.
Paulo Chedid
24 de julho de 2019



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